Uma simples frase de nossa literatura tocou um coração doente e o trouxe para A.A. Quando cheguei em Alcoólicos Anônimos, com o ego inflamado e completamente carregado pelo ceticismo em relação a Deus, aos homens e a mim mesmo, não conseguia assimilar que um programa tão singelo pudesse operar tantas transformações na vida de uma pessoa marcada por profundas crises existenciais, como era o meu caso. Eu me recordo com perfeita nitidez o meu primeiro contato com a literatura de A.A., que se deu antes mesmo que eu frequentasse uma reunião. Naquela ocasião eu me encontrava internado em um hospital de Belo Horizonte, para realizar um tratamento de desintoxicação alcoólica. Quando fui desfazer as malas, eis que deparo com um exemplar do livro "Os Doze Passos", que minha mãe havia colocado em meio à bagagem, por orientação de minha tia Al-Anon e, tenho certeza, por inspiração do Poder Superior. Somente com o intuito de matar o tempo, dispus-me a ler aquele livro, com a convicção firme de que tal leitura nada iria acrescentar ao meu sublimado critério a respeito do alcoolismo. Porém, a perplexidade colheu-me já na leitura da primeira página. Um pequenino trecho deixou-me atônito roubando-me o sono naquela noite. O texto fazia referência à derrota frente ao beber destrutivo e mencionava que a admissão da impotência pessoal poderia se tornar o leito de rocha firme que serviria de alicerce para a edificação de vidas felizes e significativas. Tal assertiva me desconcertou pelo fato de se contrapor a tudo aquilo que eu pensava que sabia a respeito do alcoolismo. Naquela época, eu já aceitava minha relação de dependência, mas jamais sonhara até então que, para superar o problema de alcoolismo, o caminho era sucumbir à minha obsessão alcoólica. Muito ao contrário, a minha persuasão íntima, sempre acalentada pelo orgulho e regada a uísque, era de que a solução estava em colocar-me sempre em posição de domínio e superioridade em relação ao álcool. Hoje sei que meus fracassos nas tentativas de parar de beber tiveram origem nessa autonomia pretensiosa e suicida. Aquelas poucas palavras me incomodaram a ponto de conduzir-me a uma reunião de A.A., que um Grupo realizava dentro da instituição onde eu estava internado. Durante a reunião, as palavras do livro tomaram vida nos depoimentos dos companheiros, confirmando a proposição de que a admissão da derrota poderia ser a porta de ingresso para uma vida nova, bem como a matéria-prima para se erigir um novo ser humano. Lembro-me que aquela reunião me provocou uma sensação estranha, uma certeza de que eu fazia parte daquilo tudo e que funcionaria para mim, desde que eu quisesse. Acho que experimentei algo semelhante ao "senso de pertencer" a que se refere a literatura da Irmandade. Quando pude encarar melhor o Primeiro Passo, dei-me conta de que, olhando com honestidade para minha vida, só consegui divisar um amontoado de escombros. Foi naquele momento que compreendi o significado do "fundo do poço" , que mais tarde pude ler em algum lugar: "Fundo de poço não é cadeia, nem internação. Não é quarenta garrafas de pinga por dia, nem pedir esmola nas ruas. Fundo de poço é uma falência moral íntima, é uma derrota que acontece dentro da gente." Assim, a partir dos destroços de minha vida, comecei a trabalhar minha recuperação, tendo os Doze Passos como instrumental e os Grupos de A.A. como laboratórios. Descobri que a prática dos princípios tem o verdadeiro poder de transmutação sobre o ser humano que sinceramente deseja recuperar-se. Tal como um alquimista em busca da Grande Obra, tento aperfeiçoar-me a cada dia, procurando, por meio da filosofia de Alcoólicos Anônimos, transformar o vil metal da ruína existencial no mais refinado e reluzente Ouro da Serenidade, da Coragem e da Sabedoria. (Kennedy L.) Vivência nº 53 - Maio/Junho 1998 |